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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Orientalismo IV - Budismo - parte II



O QUE É O BUDISMO?

ENTREVISTA:

Alaya, para responder as perguntas deste tema. Ela estuda o budismo há mais de 8 anos e também pratica meditação; por seu pai ser coordenador do centro budista LamRim, em Brasília e autor de livros sobre budismo, teve a oportunidade do contato com lamas desde criança.

1ª verdade: 

Estar vivo é estar sujeito ao sofrimento. Implica em sofrer.

A insatisfação e a frustração nos acompanham toda vida. À saúde segue-se a doença, à juventude segue-se a velhice, à vida segue-se a morte. Estar unido ao que se detesta é sofrimento. Separar-se do que se ama é sofrimento. Não se obter o que se deseja é sofrimento
Então o Buda vai diferenciar 3 tipos de sofrimento:

1 - o sofrimento físico, sofrimento do parto, de cair, de ficar doente, morrer

2 - sofrimento psicológico, que é causado pela impermanência associada a um apego. Isso vai desde nossas emoções mais sutis ao fato de quando vivenciamos algo bom e ficamos tentando repetir esse momento, mas não nos damos conta que cada momento é único, e assim nos frustramos. Quando nos apegamos a alguém e desejamos que esse alguém esteja sempre conosco, mas ao nos darmos conta que as coisas são impermanentes, sofremos.

3 - o terceiro tipo de sofrimento é o mais difícil de explicar. Digamos que é um 'sofrimento da alma'. É um sofrimento decorrente de nossa condição de ignorância da realidade, da verdade última e de nossa própria natureza. Vemos nosso 'eu' como algo independente, auto-existente, inerente, separado... e dividimos as outras pessoas e as coisas do mundo e essa falta de percepção da unicidade entre todos os seres e todas as coisas, da interdependência, de nos acharmos separados, gera um sofrimento residual no 'SER' da pessoa.

2ª verdade:

Há uma causa para todo esse sofrimento, há uma raiz.

A causa para o sofrimento é chamada de AVIDYA que, literalmente traduzido do sânscrito, significa 'não visão'. Avidya é o que comentei no 3º tipo de sofrimento. É uma ignorância quanto a realidade do eu e dos fenômenos que nos mantêm apegados a uma personalidade que acreditamos ser independente e auto-existente e nos aparta da vivência da realidade e faz com que desejemos as coisas e nutramos apegos e também tenhamos aversão. E também faz com que não vivamos plenamente despertos, assim desenvolvemos vícios, defeitos, perturbações (decorrentes dessa visão errada e apegada sobre nosso eu).

A insatisfação e o sofrimento são o resultado do desejo e da cobiça, que não podem ser plenamente realizados. A maioria das pessoas é incapaz de aceitar o mundo como é porque é levada a buscar sempre o agradável e fugir do negativo e doloroso. O anseio e o desejo sempre criam uma estrutura mental instável, no qual o presente nunca é satisfatório. O desejo nunca se sacia, a sede nunca se apaga, a fome nunca se satisfaz. Quanto mais intenso for o desejo, mais intensa será a insatisfação ao saber que tal realização não irá durar.

3ª verdade:

É possível cortar a raiz do sofrimento. Eliminar a causa da dor.

4ª verdade:

Há um caminho para essa cessação do sofrimento

Esse caminho é chamado de caminho óctuplo:

- reta compreensão
- reto entendimento
- reta palavra
- reta ação
- reto meio de vida
- reta energia/entusiasmo
- reta atenção
- reta contemplação.


Não vou me aprofundar em cada um deles, mas dá muito pano para manga. Por exemplo, reto entendimento é buscar conhecer as coisas, se informar, discernir. Reta compreensão é dar vazão para nossa intuição, de modo que não sejamos guiados por concepções erradas. Reta palavra é não agredir com a linguagem, falar apenas palavras verdadeiras e necessárias. Usar a linguagem de maneira reta. Reto meio de vida é não buscar se sustentar com coisas que gerem sofrimento a outros seres, como por exemplo ser um político corrupto.

Como trabalhar para a indústria armamentista. Trabalhar para empresas farmacêuticas que abusam de seres humanos (como no filme o jardineiro fiel). Trabalhar num abatedouro matando animais e causando dor... é buscar uma profissão que gere benefícios para a humanidade, e não fira ninguém. 

Reto entusiasmo é saber direcionar nossa energia e usá-la para ações corretas. Se entusiasmar com coisas boas, como um projeto social, ao invés de futilidades.

Reta contemplação é buscar o mergulho interior, o silêncio da meditação e buscar conhecer a si mesmo e despertar sua luz interior e não deixar dominar-se pela mente e seus pensamentos mundanos.

'O sofrimento é para ser plenamente conhecido.
A fonte do sofrimento é para ser eliminada.
A cessação do sofrimento é para ser vivenciada diretamente.
A senda que conduz à cessação do sofrimento é para ser cultivada'.
                                                                             (Lalitavistara Sutra)

- A libertação do sofrimento e a iluminação não é algo instantâneo. É algo a ser cultivado. Uma escada para subir, uma senda a ser trilhada. Uma evolução.

- há grandes espíritos de luz que estão nos últimos degraus dessa escada que auxiliam a humanidade a encontrar o caminho. Esses grandes mestres são chamados de Arhats e Bodhisatvas, são os mais elevados discípulos do Buda e já possuem autodomínio e não são mais apegados ao mundo e não sofrem com coisas grosseiras.

- Tudo é impermanente. O budismo vai dizer o mesmo que o filósofo pré-socrático Heráclito. Nunca colocamos o pé no mesmo rio, pois nunca é o mesmo rio, nem a mesma água. Tudo muda, tudo passa.

O que é a lei do Karma?

- A Lei do Karma é algo fundamental no budismo. Talvez seja um pouco diferente da visão espírita, mas é a mesma ideia. Colhemos o que plantamos. Somos responsáveis por nossas ações. Geramos karma meritório/positivo e negativo.

Algumas passagens ilustrativas sobre a ideia de karma no budismo:

"Tudo o que somos hoje é resultado do que temos pensado. Se um homem fala ou age com uma mente impura, o sofrimento o acompanha tão de perto como a roda segue a pata do boi que puxa o carro."

"O insensato, que age de modo errôneo, sofre neste mundo e no seguinte. Em ambos ele se aflige e se lamenta ao recolher os maus resultados de suas ações impuras."

"Não te amofines contra o karma, nem contra as imutáveis Leis da Natureza. Ajuda a Natureza e coopera com ela e a Natureza ter-te-á por um de seus criadores e se te tornará obediente."

"Semeia ações bondosas e colherás os seus frutos. A inação num ato de misericórdia se converte em ação num pecado mortal. Assim diz o Sábio: Quererás abster-te da ação? Não é assim que tua alma obterá sua libertação. Para alcançar o Nirvana é mister alcançar o autoconhecimento, e o autoconhecimento é filho de atos amorosos."

"Se queres colher doce paz e descanso, Discípulo, semeia com sementes de mérito os campos de futuras colheitas. Aceita as dores do nascimento. "

"Aprende que nenhum esforço, por mínimo que seja, – tanto na direção certa como na errada – pode desvanecer-se no mundo das causas.

... Uma palavra brusca proferida em vidas passadas não se perde, mas renasce sempre. A pimenteira não produz rosas, nem a argentea estrela do jasmim se torna espinho ou cardo.

Podes criar 'hoje' tuas oportunidades de 'amanhã'.

Na 'Grande Jornada', as causas semeadas cada hora produzem, cada qual, sua colheita de efeitos, porque uma rígida justiça governa o mundo. Com o potente impulso de sua ação infalível, ela traz aos mortais vidas de felicidades ou aflições, que são a progênie kármica de todos os seus anteriores pensamentos e atos".

Anima-te e contenta-te com a sorte. Tal é o teu karma, o karma do ciclo de teus nascimentos, o destino daqueles que, em sua dor e tristeza, nascem simultaneamente contigo, regozijam-se e choram de vida em vida, encadeados a tuas ações anteriores.

Segue a roda da vida; segue a roda do dever para com a raça e a família, o amigo e o inimigo, e imuniza tua mente aos prazeres e à dor. Esgota a lei da retribuição kármica."

As tendências que as pessoas apresentam desde a infância são resultado do karma. Apesar de serem criados de uma mesma maneira, apresentam características diferentes devido à natureza de seus karmas. 

"As vidas passadas produzem tendências inatas." 

As ações anteriores influirão nas condições de nascimento e de vida da pessoa. Cada uma de nossas ações é um elo na cadeia do 'samsara', que não tem começo, entretanto pode ter fim.

"Para compreender esta cadeia, é necessário entender a relação entre mente e corpo. A mente é como um rio que passa por países diferentes (corpos). Um rio toma diferentes nomes (formas), conforme os diferentes países. Desta maneira a mente segue, carregando o karma acumulado com ela. Quando morre um ser, o corpo deteriora-se e a mente continua em outra forma de corpo, tomando outro veículo de acordo com o tipo de karma que acumulou."

Bem, desculpem se me alonguei nesse tema, considero essas passagens belíssimas e creio que todos, espíritas ou budistas, podem aproveitar-se positivamente delas. 

Ah sim, uma nota: "mente", para os budistas, não se limita à mente intelectual conceitual. É um problema de tradução. Se refere à mente pura, a mente inata a todos os seres, a mente que eles chamam de 'clara luz'. Podemos fazer um paralelo com "alma".

Os 5 agregados que constituem o eu?

Para o budismo o eu é como um "carro":

O carro é feito de rodas, motor, fuselagem etc... as rodas sozinhas não são o carro... o eu é um composto de agregados que corretamente correlacionados nos dão uma noção de sermos um eu, um individuo:
  • O "EU" e os agregados (skandhas).
  • Rupa (forma, imagem, corpo físico, figura).
  • Vedana (sensações, sentimentos, os sentidos).
  • Samjña (discriminações, percepção diferencial, conceituação mental).
  • Samskaras (tendências, impulsos, memória, tendências kármicas trazidas de outras vidas).
  • Vijñana (consciência particularizada, autopercepção, consciência de ser um eu)
Bem, é um tema muito complexo, apenas para dar uma ideia a vocês.

os três tipos de ação:


Toda ação gera um karma, as ações podem ser físicas, da linguagem (falada/escrita) ou do pensamento. Para o budismo, pensar também é uma forma de agir. Ao desejar o mal a alguém, forma-se uma consequência kármica negativa, pois os pensamentos tomam forma e alteram nosso ser.

O samsara, o renascimento e os elos da originação dependente - segundo o budismo, nós estamos presos no samsara.

Isto é, devido a nossos defeitos, vícios e contaminações e nossa ignorância raiz e, principalmente o APEGO, nós somos compelidos a nascer e renascer obrigatoriamente cada vez que morremos, pois não temos domínio próprio. Somos arremessados no 'samsara'.

Samsara designa esse estado de estar preso ao nascimento compulsório no mundo. Um Buda (ou um Jesus ou outro grande mestre) pode OPTAR por nascer para ajudar a humanidade, porém, nós somos vitimas de nossas próprias circunstâncias. O samsara é feito de elos interdependentes que são os mecanismos que aqui nos prendem. esses elos (os 12 nidanas) são basicamente: a ignorância que nos faz ter ações contaminadas que geram karmas, esses karmas nos prendem a um renascimento obrigatório; esse renascer nos dá um corpo, e o corpo entra em contato com o mundo através dos sentidos, gerando sensações; dessas sensações surgem o desejo e o apego e do apego contaminado pela ignorância surge mais renascimento, envelhecimento e morte. É basicamente isso.

O que é BUDA?

Deve ficar claro que Buda não é um nome próprio, é um titulo, é um estado de consciência. Significa iluminação. Existe um estado de consciência iluminada que todos nós podemos atingir. Uma energia "búdica". Sidharta não foi o primeiro Buda nem o ultimo.

Guru:

No budismo, a figura do mestre, do guru, é bastante forte. Não em um sentido de bengala ou idolatria, mas de alguém que sabe mais e nos auxilia em nosso caminhar.

Em algumas práticas de meditação, visualizamos o guru como sendo uma emanação do próprio Buda, assim nos aproximamos mais da energia de um Buda e, ao mesmo tempo, geramos energia positiva para que o guru se aproxime cada vez mais do estado de iluminação.

Conceitos básicos do budismo

kleshas - as perturbações mentais:

Para o budismo, existem seis venenos básicos que nos fazem sofrer e que devem ser eliminados

a raiz do sofrimento, a raiz de todos eles:

1 - a ignorância que não percebe a realidade do eu e dos fenômenos
2 - o apego ou desejo
3 - a aversão
4 - o orgulho
5 - a dúvida vacilante
6 - as visões errôneas

Paramitas - as 6 virtudes perfeitas:

1 - a generosidade (não doar apenas materialmente, mas doar energia, doar ensinamento, dedicar sua vida a algo para um bem maior)
2 - paciência (paciente mas não passivo)
3 - harmonia nas ações, ser ético
4 - perseverança entusiástica
5- contemplação, meditação
6 - sabedoria.

Ao desenvolver essas virtudes, o caminhante sobe degraus na senda para a iluminação.

Os três principais aspectos da Senda para a iluminação

para tornar-se um Buda e libertar-se do sofrimento 3 coisas são essenciais:

- Compaixão - Compaixão plena, profunda e verdadeira. Por todos os seres sencientes, por todo o planeta. Ver a todos não só como irmãos, mas como parte de nós mesmos, pois compreendemos a independência.

- Sabedoria - Sabedoria que compreende essa independência, essa falta de separatividade das coisas, percebe a realidade tal como ela é e, assim, naturalmente, também faz surgir simultaneamente (e vice versa) a compaixão.

- Desapego - Desapego não é abandonar nossos entes queridos nem nossos objetos pessoais, mas mudar o modo como nos relacionamos a eles. Amando plenamente sem apegos, percebendo a impermanência. O apego é uma atitude mental, uma pessoa muito pobre pode ser muito apegada a algo, enquanto alguém que tem muitos bens pode se relacionar de maneira mais saudável com eles, por exemplo.

Conceitos básicos do budismo?

A realidade - paramarthasatya e samvritisatya 

Para o budismo existe uma realidade última, suprema, em que nos libertamos de conceituações e vemos todas as coisas tais quais são, e existe uma realidade relativa, uma realidade aparente, que é necessária para que vivamos no mundo.

É um dos temas mais complicados dentro do budismo, muito profundo filosoficamente. Lembra bastante as questões que têm sido colocadas pela física quântica e essas outras idéias modernas que têm surgido. Várias ideias do filme 'quem somos nós' se assemelham muito com a visão budista do mundo.

Meditação:

A meditação é muito importante. O propósito dela não é se isolar, mas nos tornar pessoas melhores. E sendo melhores, podemos ser melhores exemplos e melhorar o ambiente em que vivemos através de nossa vibração positiva. A meditação tem vários níveis.

A principio, um de seus propósitos é cessar as ondas, o movimento agitado da mente conceitual, dar espaço para a mente pura, a mente iluminada, o ser de luz que vibra dentro de nós, manifestar-se no silencio. Meditação é autoconhecimento; é aprender a reconhecer nossas emoções, tomar as rédeas de nossa mente ao invés de deixar que ela e nossos impulsos dominem nosso dia a dia. Meditar é fortalecer as virtudes, dar espaço para a 'voz do silencio'.

Quando o praticante finalmente atinge um estado de paz interior em que cessam os movimentos do pensamento isso é chamado 'shamata'.

Tendo atingido esse estado, o praticante pode mergulhar mais profundamente em seu ser e buscar resposta para suas questões existenciais que estas virão da maneira de um profundo insight

Bem, esses são alguns dos conceitos básicos do budismo.

Me desculpo se me alonguei demais, tentei ser breve, mas cada um desses temas dá um livro inteiro. Esses conceitos aparecem nas mais diferentes linhas do budismo. Mas devo ter esquecido de algum. Espero que sejam o suficiente para dar uma boa noção.

Haviam muitas profecias anteriores à encarnação de Sidarta que lhe indicavam o nascimento e a vida. É possível saber qual a posição dele diante destas profecias?

Não sei se haviam profecias anteriores a Sidharta. O que se sabe é que quando um grande mestre da luz vai nascer, todos aqueles que estão em algum grau de evolução trilhando o caminho da luz procuram nascer próximos para terem a oportunidade rara de aprender com um Buda (o que me lembra uma passagem de um evangelho apócrifo do cristianismo em que Jesus diz que ele combinou (antes de nascer) com todos os seus discípulos para que nascessem ali).

Quando Sidharta nasceu, um grande vidente visitou seu pai, que era rei de uma região, e disse que o menino seria um grande líder.

Sidarta se considerava O Iluminado ou este adjetivo lhe foi atribuído após sua desencarnação?

O adjetivo só foi atribuído posteriormente, assim como com outros grandes mestres da humanidade. Ele mesmo dizia para as pessoas não acreditarem nas coisas só porque está em uma escritura, porque alguma autoridade disse etc, mas para filtrarem o ensinamento em seus corações. Ele não pedia para acreditarem nele.

Conta-se que durante a sua infância/adolescência, o Buda foi apresentado à muitos prazeres, por seus próprios pais, para tentar desviá-lo do cumprimento das profecias que lhe anunciavam. É possível saber até onde tais tentações encontraram ressonância nos hábitos dele, e se influenciaram de alguma forma a formação de seu caráter ou de sua doutrina?

Bem, como pude ver, você conhece a historia da profecia. De fato conta-se que seu pai, sendo um poderoso rei local, desejava que seu filho fosse seu herdeiro, e não um religioso. Na índia até hoje é comum pessoas abandonarem suas casas para seguir a vida religiosa, e muitas vezes fazem isso por fuga. A lenda conta que Sidharta foi cercado com os prazeres do mundo, mas obviamente a lenda é exagerada, dizendo que ele nunca saiu do palácio e tudo o mais. Sempre há um aspecto lendário para toda essas coisas. Até hoje é comum na Índia os casamentos arranjados. Logo que Sidharta nasceu, seu pai arranjou-lhe uma esposa para casar mais tarde. Ele casou com 17 anos (se não me falha a memória) e teve um filho. Posteriormente, sua família tornou-se seus discípulos também. Pesquisando historicamente as escolas de filosofia indiana (o hinduísmo, os brâmanes, a vedanta, a yoga, os upanishades) daquela época e as influências na região, e pesquisando as pessoas com que Sidharta teve contato, fica evidente que o jovem teve uma boa educação e passou pelos melhores mestres dessas linhas.

Mas o que torna mais fácil de entender é que, pelo que sabemos (através do budismo e do espiritismo), tudo é um processo de evolução, um ser não torna-se Buda de uma vida para outra, é uma alma em ascensão espiritual. Um ser elevado tem suas inquietações interiores, suas reflexões e meditações. Há historias sobre a infância de Sidharta em que ele contempla várias de suas vidas anteriores e se questiona sobre a existência.

É claro que seu pai desejava um bom rei, e não mais um asceta como havia aos montes na índia. E por isso a lenda tem seu fundo de verdade. Mas seria ingênuo pensar que uma alma tão elevada não iria ter suas próprias experiências e reflexões desde cedo e se deixar levar tão facilmente pelo mundo externo. Nós sabemos que não é assim, e a pesquisa histórica sobre as influências e contatos mostra um Sidharta menos lendário e mais buscador.

O Budismo tem uma doutrina constituída? Ele tem dogmas (doutrinários ou religiosos)?

A doutrina budista é basicamente esses conceitos que coloquei anteriormente. Há outras coisas, mas com esses conceitos básicos já dá para ter uma ideia. Não existem dogmas. Um ensinamento muito citado em meios budistas é esse:

"Tenhais confiança não no mestre, mas no ensinamento.

Tenhais confiança não nas palavras do ensinamento, mas no espírito das palavras.

Tenhais confiança não na teoria, mas na experiência.

Não creiais em algo simplesmente porque vós ouvistes.

Não creiais nas tradições simplesmente porque elas têm sido mantidas de geração para geração.

Não creiais em algo simplesmente porque foi falado e comentado por muitos.

Não creiais em algo simplesmente porque está escrito em livros sagrados; 

não creiais no que imaginais, pensando que um Deus vos inspirou.

Não creiais em algo meramente baseado na autoridade de seus mestres e anciãos.

Mas após contemplação e reflexão, quando vós percebeis que algo é conforme ao que é razoável e leva ao que é bom e benéfico tanto para vós quanto para os outros, então o aceiteis e façais disto a base de sua vida."

Kalama Sutra

Qual o papel dos rituais para o verdadeiro budismo?

Como toda religião, o budismo tem seu lado mais interno, mais profundo, mais filosófico, mais prático e seu lado mais externo, popular, cultural, 'religioso'

Alguns rituais são meramente externos e "religiosos" (no sentindo ruim do termo). Já outros têm um propósito. Os mantras, por exemplo, são usados para gerar uma vibração positiva na aura, pois sabemos que o som é vibração. Também são usados para proteger a mente de pensar coisas negativas. Enquanto a pessoa está cantando mantra ela não está pensando na novela, nas compras do mercado, no problema com o marido etc., e assim o tom vibratório da mente melhora.

Os altares e oferendas podem ser bastante vazios e exagerados, mas se feitos corretamente são um exercício de humildade e generosidade.

Considerando que o budismo teria nascido na Índia, existem diferenças em sua prática por lá e nos confins da China?

Existem diferenças sim. O budismo foi sofrendo influências. Não é impressão sua, na Índia há muito poucos budistas. Veja bem, a Índia sempre foi muito grande e teve uma população muito numerosa. Quando o Budismo surgiu, surgiu no norte e teve bastante seguidores. Alguns desses seguidores espalharam o budismo no sul da Índia, no Laos, Camboja etc., outros para o Nepal, Butão... Porém, o número de hinduístas sempre foi muito maior. Lá pelo século VIII, os muçulmanos começaram a invadir a Índia pelo norte e a maioria dos budistas fugiu para o Tibet e China. O budismo praticamente sumiu da Índia.

No Tibet, ele sofreu influências da tradição local, o Bön (xamanismo) e incorporou a cultura tibetana de ter coisas muito coloridas e tal. 

No Japão, misturou-se com o xintoísmo e assim por diante. O budismo tibetano é mais focado em práticas que envolvem o trabalho com energias (chakras) visualizações, cores, mantras...

O budismo japonês tem uma meditação mais focada apenas no silêncio (essa é uma das diferenças).

Há diferenças de ênfase nos ensinamentos, pois em cada região chegou textos e mestres diferentes, mas nenhuma diferença muito gritante. 

Os budistas acreditam em Deus?

Talvez essa sua pergunta seja a mais difícil de responder dentro do budismo. Até hoje cria-se polemica em torno do tema. Buda não afirmou nem negou nada sobre a existência de Deus.

Porém, meus amigos, antes de responder essa pergunta, pensemos no contexto histórico e cultural. Essa nossa visão sobre Deus é baseada na cultura judaico-cristã que, por muitos séculos, antropomorfizou deus, transformando-o em um ser, um algo que possui inteligência que criou um mundo. Se nos aprofundarmos no estudo da cabala, por exemplo, perceberemos que, mesmo na cabala judaica, há uma ideia mais 'filosófica' a respeito de deus, e menos 'personalista'. A ideia do AIN SOPH.

Ain Soph (do hebraico: Sem Limites) é o Todo Supremo da cabala, aquilo que podemos chamar de "Deus" em seu aspecto mais elevado, não sendo, no sentido estrito da palavra, um "ser", já que, sendo auto-contido e auto-suficiente, não pode ser limitado pela própria existência, que limita a todos os seres que a possuem. De Ain Soph é que emanam os Sephiroth para formar a árvore da vida, que é uma representação abstrata da natureza divina (Pleroma). Ain Soph é o Não Ser, um princípio que permanece não manifestado e é incompreensível à inteligência humana.

O Ain Soph da cabala é o mesmo Ser e Não ser de Parmênides (um filósofo pré-socrático). O mesmo OIW dos celtas, uma 'potência divina que a tudo preenche', e não um ser na forma de 'deus criador'. O mesmo zero de Pitágoras. O zero que se manifesta em 1, e daí surge a manifestação. É muito mais uma ideia metafísica sobre a realidade do todo do que um ser para quem oramos e pedimos.

Plotino, um filósofo neoplatônico, vai dizer o seguinte:

"O Uno é todas as coisas e nenhuma delas.
A Unidade é uma fonte sem origem.
Nos planos sutis cada ser constitui uma parte do Todo.
Retira-te em ti mesmo e contempla. A contemplação é o fim da ação.
Jamais olho algum contemplará o Sol sem tornar-se semelhante ao Sol, nem alma alguma verá a Beleza sem ser bela. Que todo ser se torne divino e belo, se quer contemplar o Uno e a Beleza."

E creio que para o budismo seja assim também. Se tivermos essa ideia sobre o UNO, a VIDA UNA em seu sentido metafísico, talvez possamos nos aproximar de uma ideia de Deus no Budismo.

O budismo nasceu na Índia e na Índia nunca existiu a ideia de um deus como o nosso deus 'judáico-cristão'. A Filosofia Vedanta vai tratar os deuses hindus como arquétipos, princípios do universo, símbolos das energias que regem o mundo, e não exatamente seres que possuem vontades próprias. São princípios arquetípicos.

No Brahmanismo também temos algo semelhante... há um criador 'Brahma', mas Brahma é o 1, e não o 0 - aquele que a tudo precede, o auto-existente, incriado, inefável e incognoscível.

No budismo, assim como na escola de filosofia indiana chamada Samkhya, há a ideia de ciclos. Purusha - o espírito, e Prakriti - a matéria, se intercalam em "inspirações e expirações" (dias e noites de Brahma). Assim, não há um Deus que criou o mundo, há ciclos de criação regidos por leis universais. Assim como Einstein disse que E=mc2, que energia é matéria... Purusha tranforma-se em Prakriti e surgem os mundos e os planetas, esses passam por ciclos de evolução e então Prakriti se recolhe novamente a Purusha, e isso se repete através das Eras, então é bem diferente da Ideia de um Deus que cria o planeta terra.

Como podem perceber, falar de Deus dentro do budismo é algo extremamente complicado. Não há um conceito dentro do budismo que se relacione ao nosso 'imaginário' da figura de deus, os budistas não oram a um deus, não se reportam a uma imagem de um deus. Mas é como no exemplo do AIN SOPH que citei ali em cima: "Ain Soph é o Não Ser, um princípio que permanece não manifestado e é incompreensível à inteligência humana."

Se ele é incompreensível à inteligência humana, se é algo tremendamente abstrato, eles não se ocupam a tentar entender, pois compreendem sua incompreensibilidade. E assim se envolvem com questões mais práticas, possíveis de compreender e vivenciar.

Então, não há deus no budismo da forma que há para nós, ocidentais, mas isso não quer dizer que sejam ateus, que não acreditem em princípios espirituais que regem a grande VIDA UNA.

No século XIX um grande mestre do budismo que viveu um tempo no ocidente e estava familiarizado com ideias ocidentais (mas viveu a maior parte de sua vida no Tibet) escreveu uma carta a um ocidental tentando explicar a visão dele de deus.

Vou colocar alguns trechos aqui, pois considero muito interessante. Peço que vocês lembrem que ele se reporta ao conceito 'deus' que existia no século XIX, que ainda era muito fortemente aquela coisa antropomórfica.

"Sabemos que há vidas planetárias e outras vidas espirituais e sabemos que em nosso sistema solar não existe coisa tal como Deus, seja pessoal ou impessoal. Parabrahm não é um Deus, mas a lei absoluta e imutável, e Ishwara (outro deus hinduísta) é o efeito de Avidya (a ignorância) e Maya, ignorância baseada na grande ilusão. A palavra “Deus” foi inventada para designar a causa desconhecida daqueles efeitos que o homem tem adorado ou temido sem entender"

O que ele está dizendo é que quando alguém morria de causa misteriosa (para a época) diziam 'foi deus' (mas, na verdade, podia ser um câncer ou outra coisa), quando algum 'médium' produzia uma manifestação, as pessoas diziam 'foi deus que se manifestou', mas, na verdade, foi a ação de um médium. O budismo, assim como o espiritismo, busca ser cientifico, e não atribuir crenças aquilo que não se consegue explicar.

Ainda da carta: "A ideia de um Deus não é uma noção inata, mas adquirida"

A ideia de deus está tão arraigada em nossa cultura ocidental que não conseguimos aceitar que alguém não pense como nós. Mas, de fato, os orientais vivem a espiritualidade sem essa ideia de deus que nós temos.

"Nós só temos uma coisa em comum com as teologias – nós revelamos o infinito. Mas enquanto atribuímos causas naturais, sensíveis e conhecidas (por nós, pelo menos) a todos os fenômenos que procedem do espaço, da duração e do movimento infinitos e ilimitados, os teístas atribuem a eles causas sobrenaturais, inteligíveis e desconhecidas.

O Deus dos teólogos é, simplesmente, um poder imaginário, um bicho papão. Nossa principal meta é libertar a humanidade deste pesadelo, ensinar ao homem a virtude pelo bem da virtude, e ensiná-lo a caminhar pela vida confiando em si mesmo, ao invés de depender de uma muleta teológica".

"... o vosso Deus é nossa VIDA UNA, imutável, inconsciente em sua eternidade... Quando nós falamos da nossa Vida UNA, também dizemos que ela não só penetra, mas é a essência de cada átomo de matéria; e que, portanto, ela não apenas tem correspondência com a matéria, mas possui, também, todas as suas propriedades."

"Negamos a existência de um Deus pensante, consciente, com base em que um tal Deus deveria ser condicionado, limitado, sujeito à mudança, e portanto, não infinito. Rejeitamos a proposição absurda de que pode haver, mesmo em universo ilimitado e eterno, duas existências eternas e onipresentes. Se esse ‘Deus’ for descrito para nós como um ser eterno, imutável e independente, sem partícula alguma de matéria em si, então responderemos que ele não é um ser, mas um princípio imutável, uma Lei.... Deus, já que ninguém jamais e em tempo algum o viu – a menos que ele seja a própria essência da Natureza, sua energia e seu movimento,"

"um sentimento constante de dependência a uma Divindade vista como a única fonte de poder faz com que um homem perca toda autoconfiança e o impulso para a atividade e a iniciativa. É um pecado atribuir a um Deus a tarefa de libertar as pessoas de si mesmas."

Talvez muitos de vocês sintam aversão por esse posicionamento, sintam-se desconfortáveis. Porém o que eu gostaria de deixar claro é que o budismo ensina que, no coração de cada ser, há uma semente de luz 'divina' esperando para germinar, que essa mesma semente de luz habita todos os seres e portanto nos torna unidos.

Um mestre do budismo do século 2d.C chamado Nagarjuna, vai dizer em uma de suas obras:

"A natureza de todas as coisas
Aparece como um reflexo,
Puro e naturalmente brilhante,
Com a natureza não-dual, tal como é."

Então o budismo busca o despertar desse princípio espiritual presente em todos os seres, e busca essa transcendência da dualidade... mas é complicado fazer um paralelo com o nosso deus ocidental, pois paralelos entre culturas, termos e linguagens, nem sempre são corretos e precisos.

Como o Budismo vê a mediunidade? Como ela é usada pelos adeptos?

No budismo existem os chamados SIDDHIS. Sidhis são os poderes supra-humanos. Isto é, clarividência, clariaudiência, telepatia, mover objetos com a mente, essas coisas.

Em algumas lendas, chega-se a dizer que Buda levitava e conversava com os deuses (para nós seriam anjos, etc.)

Por exemplo, Sidharta, o Buda, teve um grande discípulo, seu maior discípulo chamado Maitreya. Os discípulos mais elevados do Buda são seres muito evoluídos que já possuem autodomínio e podem nascer no mundo se quiserem ou não, ou podem habitar outros planos espirituais.

No século 4d.C., isso é, uns 900 anos após o desencarne do Buda, um grande mestre budista chamado Asanga fundou uma escola de budismo mahayana na Índia chamada Yogacara. Asanga escreveu muitos livros, mas três de suas obras (as mais profundas) são atribuídas ao próprio Maitreya. O que a tradição conta é que Asanga, em profunda meditação, recebeu instruções de Maitreya.

No século 14 d.C. outro mestre budista, Tsongkhapa (fundador da escola gelugpa, que é a do Dalai Lama) teve contato com o próprio Buda. Porém, aqui é um pouco diferente. É dito que Tsongkhapa se conectou à energia de Sabedoria de um Buda, ele não se conectou ao homem Sidharta, mas à energia búdica acessível apenas para os seres mais elevados. E assim, conectado à sabedoria búdica, ele escreveu belíssimas obras.

Há vários exemplos desse tipo.

Então, a mediunidade existe dentro do budismo, mas ela não é considerada a coisa mais importante. Isso se dá porque os budistas veem o plano astral como um plano inferior, inferior ao próprio plano mental (e os mestres só estariam acima deste). Eles também consideram que devemos deixar os mortos seguirem seu curso em paz e não ficar atraindo-os de volta ao apego à vida terrena. No mais, ter siddhis (poderes mediúnicos) é considerado menos importante do que a prática das virtudes. Então existe, mas não é a ênfase central.

Buda e Jesus - semelhanças

Destacando brevemente:

É dito que Buda nasceu de uma virgem, e ao nascer ele caminhou e andou e por onde pisava nasciam flores de lótus. Tanto Buda quanto Jesus passaram por tentações e procuraram divulgar um ensinamento baseado na compaixão.

Sobre o termo Cristo: como muitos aqui devem saber, Cristo não é o sobrenome de Jesus, mas assim como Buda foi atribuído a Sidharta, o titulo Cristo foi atribuído a Jesus. Sou tradutora e, como estudante de tradução, não pude deixar de notar que o termo Khristos em grego é semelhante a Krishna, e ambos tem uma significação de algo relacionado à luz.

Voltando à Questão de Deus, enquanto o budismo fala sobre uma VIDA UNA que a tudo permeia, o cristianismo fala 'deus está dentro de vós e em todas as coisas' (no evangelho de Tomé, por exemplo).

Enquanto o budismo fala "A semente búdica habita o coração de todos os seres e todos podem tornar-se budas", o cristianismo fala (nas cartas de são Paulo) "Cristo EM VÓS é a esperança da glória... Que o discípulo torne-se como o mestre"

No cristianismo temos os 10 mandamentos, no budismo temos os 5 preceitos, que são bastante semelhantes:

# não matar
# não roubar
# não ter relações sexuais ilícitas (isso é, adultério, estupro, orgias)
# não dar falso testemunho
# não uso de drogas e álcool (substâncias entorpecentes em geral).

Breve analogia entre Buda e Jesus:

Buda: "É mais fácil ver os erros dos outros que os próprios; é muito difícil enxergar os próprios defeitos. Espalham-se os defeitos dos outros como palha ao vento, mas escondem-se os próprios erros como um jogador trapaceiro"

Jesus: "Por que olhas o cisco no olho de teu irmão e não vês a trave no teu? Como ousas dizer a teu irmão: 'Deixa-me tirar o cisco de teu olho, pois sei corrigir teu erro de visão'? Hipócrita, tira primeiro o engano de tua visão, e só então poderás tirar o cisco de teu companheiro".

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Buda: "Não importa o que um homem faça, se seus atos servem à virtude ou ao vício, tudo é importante. Toda ação acarreta frutos"

Jesus: "Não pode a árvore boa dar maus frutos, nem a árvore má dar bons frutos. Porventura colhem-se figos de espinheiros ou ervas de urtigas? Toda árvore se conhece pelos frutos".

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Buda: "A pessoa má fala com falsidade, acorrentando os pensamentos às palavras. Aquele que fala mal e rejeita o que é verdadeiramente justo não é sábio".

Jesus: "O homem bom tira coisas boas do tesouro do coração, e o mau retira coisas más, pois a boca fala do que está cheio o coração.


Como o Budismo vê a continuidade da consciência de uma vida para outra?

No budismo fala-se de um "continuum mental". Não existe morte e reencarnação... existe apenas estados de consciência.

Assim, não há uma alma fixa e imutável que "pula" de um corpo a outro, mas um eterno e impermanente continuum que nasce, morre, renasce, morre... num fluxo de experiências e karmas. Não há exatamente um "ente" que nasceu e morreu e renasceu... mas esse eterno fluxo, que é mutável.

O budismo fala que nossa noção de sermos um 'eu' é decorrente de 5 agregados que, juntos, nos dão uma percepção de um ser individual.

Esses agregados são:

- a forma física e as formas mentais (como a imaginação - tudo que possa relacionar-se à 'forma'), as sensações, as percepções e discriminações (conceituação, "isso é isso, isso é aquilo, eu sou eu"), as tendências kármicas (ações que geraram karmas impressos em nosso continuum e que 'colorem' nosso ser com a 'tonalidade e cor especifica desse karma', e a consciência (o velho 'penso logo existo').

Esse ‘não-eu’ do budismo não é negar que nós existamos. Mas o budismo afirma que existimos apenas de forma relativa, apenas quando em relação com o mundo é que nos sentimos seres inerentes, independentes, separados, mas, na verdade, somos vazios de existência inerente... por isso difere do espiritismo, que dá concretude individual para as almas...

Se no budismo há a forte noção dessa falta de independência e separatividade do eu (pois fala-se de interdependência e união) e da impermanência, o ser de ontem não é o ser de hoje, muito menos o do século passado... eles são um ‘fluxo contínuo de existência’, mas não um ser (fixo, de certa forma) que sai encarnando por aí, colhendo experiências... apenas um fluxo que entra em um corpo, sai do corpo, volta ao corpo, mas um fluxo linear.

Assim, a Alaya de hoje não é a mesma Alaya de quando tinha eu tinha 17 anos e muito menos é a mesma Alaya de 10 anos de idade. Quando eu nasci, eu recebi um rótulo "Alaya", e nessa existência me identifico com esse corpo, mas mesmo meu corpo mudou através dos anos, assim como minha personalidade mudou, minhas opiniões mudaram, então eu não sou 'a Alaya', mas sou um eterno processo de mudança e auto-descobrimento. Eu tenho consciência de minha vida passada.

Levando em conta esse ponto de vista budista eu não poderia dizer "eu sou a reencarnação daquela mulher que viveu na Inglaterra no século XIX". O meu fluxo de consciência passou por aquela mulher naquele corpo e colheu aquelas experiências, mas eu não sou ela, eu sou o fluxo mutável que passou por ela... eu poderia dizer que há tendências dela se manifestando em mim, pois somos o mesmo 'continuum', mas não que eu fui ela, pois eu sou eu apenas agora, no presente, amanhã serei outra pessoa; por isso muitos budistas afirmam não existir reencarnação, pois o eu de hoje não é o de ontem... é nesse sentido que falam, não no sentido de negar uma vida anterior.

Assim, eu não posso dizer no século XXI "eu fui Joana Darc", porque Joana Darc foi aquela pessoa que sofreu aquelas influências culturais, que foi matizada por aquela época... eu sou 'consequência' de Joana Darc, mas não ela em si (não estou dizendo que fui ela não, hein gente!).

No budismo, esse fluxo de consciência, esse continuum sempre mutável é linear, mas as experiências não o são.

Lembram do ensinamento budista sobre os 5 agregados que nos dão uma noção de sermos um eu (forma, sensação, percepção, tendências kármicas e consciência)? Pois então: quando morremos, a única coisa que segue para uma próxima vida são as tendências kármicas. É claro que em cada vida somos preenchidos pela "essência espiritual" que permite nossa iluminação, mas aquilo que segue de uma vida para outra são os registros kármicos daquele fluxo.

Essas tendências kármicas são as repetidas ações que vamos cometendo no decorrer das vidas e colorem nosso fluxo de consciência de maneira particular, gerando karmas. Por exemplo, se em uma vida a pessoa foi um grande pianista, em uma próxima vida você terá uma tendência a se interessar por música. Porém, é como se todas essas tendências ficassem armazenadas numa 'caixinha no sótão' e só viessem a superfície se houvesse algo no mundo externo que as estimulassem a sair. Na prática, isso significa que um grande pianista em uma vida pode, em sua vida seguinte, não se envolver Nada com música, pois na vida seguinte resolveu manifestar outras tendências que estavam guardadas decorrentes de outras vidas e nessa vida não teve a oportunidade de ter contato com educação musical e nem sua família estimulou muito isso, então a tendência não aflora.

Porém digamos que umas 3 vidas depois, ele nasce numa casa que tem um piano. Essa criança vai ter a oportunidade de trazer à tona aquela tendência de pianista, e desde muito pequena vai querer brincar no piano e querer aprender a tocar. Ele pode ter um irmão que não se interessa nada pelo instrumento e quer brincar de outras coisas, porque esse irmão não tem a 'tendência kármica' em seu continuum que o atraia para aquilo.

Se em uma próxima vida aquele pianista virar músico novamente, ele vai reforçar aquela tendência kármica, e ela virá novamente com mais força ainda.

De outra forma, essas 'tendências kármicas' são o que vão dar cor à nossa personalidade. Se a pessoa costuma agir com raiva, essa tendência se manifestará nas vidas seguintes na forma de uma pessoa muito irritável, raivosa; se essa raiva não for trabalhada, aquilo vai se reforçando, e nas próximas vidas voltará a aparecer. Por isso, às vezes nos identificamos com nossas personalidades nas vidas passadas. E essas tendências são ações que geram karmas a serem retribuídos.

Segundo o budismo, esse karma fica impresso em nós, mas manifesta-se em momentos distintos... Na minha encarnação atual eu posso estar manifestando características (samksaras- tendências kármicas) que gerei em minha vida no século XV... e deixando as minhas características da vida do século XIX adormecidas... para depois se manifestarem daqui a umas 3, 7, 10 vidas. Para o budismo, nem sempre nossa vida atual é decorrência direta da vida anterior. Mas é claro que, dependendo do caso, a vida anterior fica mais marcada e se manifesta com mais facilidade. O budismo tibetano fala claramente de renascimento, o atual décimo quarto Dalai Lama é reconhecido como o mesmo décimo terceiro Dalai Lama... há vários relatos de ‘tulkus’ – seres de consciência elevada que escolhem seu próximo renascimento e muitas vezes são reconhecidos por seus discípulos antigos que ainda vivem. É comum ouvir historias de um grande mestre do budismo que estava bastante idoso e tinha uma discípulo razoavelmente mais jovem que ele. Esse mestre morre e renasce próximo aquele discípulo, se torna discípulo de seu discípulo, ate ficar mais velho e ultrapassá-lo. E assim tenta recuperar aquilo que foi na vida anterior e seguir em frente.

No filme KUNDUN (sobre a vida do atual Dalai Lama, de Martin Scorcese) é retratado o processo de reconhecimento de um renascimento. Um lama morre e, às vezes, ele tem consciência de onde vai renascer e fala a região... seus discípulos esperam alguns anos e depois procuram naquela região crianças que nasceram após a morte dele. Em alguns casos ocorreu de os lamas estarem andando pela vila e um menino de 4 anos estar brincando, ve-los e correr em direção a eles e chamar um deles pelo nome e abraçá-lo.

Em outros casos, o menino não reconhece de imediato, os lamas pegam vários objetos semelhantes, (como os sinos budistas) e colocam alguns bem bonitos, e no meio colocam aquele que pertenceu ao falecido. Depois de vários testes e a criança reconhecendo o certo (ela pega o objeto do falecido e fala 'é meu', às vezes, como o filme retrata) e de análise das tendências daquela criança, eles começam um processo de identificação de um tulku (um lama reconhecido)

Podemos ilustrar o renascimento budista com um símile, é como se a chama de uma vela fosse empregada para acender uma outra vela e nesse processo a primeira vela fosse apagada. A chama da segunda vela surgiu na dependência da primeira vela, ou seja, tem uma conexão com ela, mas a chama da segunda vela não é idêntica à primeira. Então, as duas chamas possuem uma ligação mas não são idênticas.

Budismo prega a metempsicose?

Esse é um tema muito complicado para os próprios budistas. Algumas escolas tradicionais acreditam sim ser possível renascer como animais. Mas há mestres do budismo que dizem que isso não é possível.

Antigamente, o uso de fábulas era muito comum para ensinar a população. Por exemplo, conta-se sobre um homem mau que maltratava seu bode e depois o matou para comer, então esse homem renasceu como bode para sentir na pele o que fez. 

Entendo isso como um ensinamento de 'moral da história', não como algo que deva ser entendido literalmente.

Recentemente fizeram uma enquete sobre essa questão na comunidade budista e 60 pessoas responderam até agora. 37% acredita ser possível renascer como animal. 33% acredita ser impossível e o restante respondeu 'não sabe' ou 'talvez'.  Eu, pessoalmente, acredito que é algo impossível.

No budismo há um ensinamento que diz que há vários reinos de existência. São seis reinos, mas todos esses seis são reinos de certa forma inferiores, pois ainda estão presos ao samsara (ao renascimento compulsório decorrente de nossa ignorância)

Os 6 reinos da existência são: o reino dos deuses, semi-deuses, humanos, animais, fantasmas famintos e os infernos.

Os deuses sofrem por saber que seu mérito terminará um dia e voltarão a ter vidas de sofrimento. Um nascimento é ocasionado no reino dos deuses através da prática de ações meritórias. Porém, como podemos ver, a simples prática do bem não liberta do samsara, se o ser que a pratica não tiver despertado a sabedoria (prajna) que compreende a real realidade do eu e dos fenômenos. Assim, não é 'fazer o bem pelo bem', mas ainda há um 'EU' que pratica alguma coisa, dessa forma, o ser não se liberta pela simples prática de ações meritórias, pois essas ações ainda estão conectadas a um equívoco de cognição que percebe um eu que pratica alguma coisa e por isso deseja ser recompensado.

Contudo, a prática de ações meritórias leva a nascimentos repletos de mais oportunidades de encontrar o dharma, e mais chances de se libertar do sofrimento.

O Sofrimento dos semideuses é inveja dos deuses e serem feridos por estes, pois os atacam.

O reino humano é o reino equilibrado, onde se pode crescer e aprender, sofrer e regozijar-se.

Animais – sofrem por serem usados para os propósitos dos outros e por não poderem falar.

Fantasmas famintos – em constante busca por comida e bebida, nunca se saciam.

Infernos quentes e frios – esgotam karma negativo.

Devemos ter muito cuidado ao apresentar os 6 reinos. Enquanto alguns budistas creem que, de fato, nascemos em infernos, nascemos como animais ou deuses etc., outros textos apontam para uma interpretação mais simbólica desse ensinamento, em que esses reinos não representam lugares, mas condições de nascimento, estados de consciência contaminados por este ou por aquele sofrimento.

Kamalashila foi um grande mestre do budismo mahayana indiano no século VIII. Ele foi, posteriormente, ao Tibet e participou do principio do budismo tibetano, e traduziu textos sânscrito para a língua tibetana. Ele é autor da obra Bhavanakrama, cujo segundo capítulo é comentado pelo Dalai Lama no livro "Os estágios da meditação".

Kamalashila diz que os sofrimento dos seis reinos da existência devem ser vistos não como ocorrendo apenas naqueles tipos de renascimento, mas também nas vidas humanas. “Humanos também experimentam os sofrimentos dos seres dos infernos e dos demais. Aqueles que aqui são afligidos por terem seus membros arrancados, serem enforcados etc. sofrem como seres dos infernos. Aqueles que são pobres e excluídos e sentem dor por causa da fome e sede, sofrem como fantasmas famintos. Aqueles em servidão e situação semelhantes, cujos corpos são controlados por outros e são oprimidos e espancados, presos... sofrem como animais"

Assim, podemos considerar que alguém que nasce numa condição de sofrimento no Alaska pode estar vivenciando um dos infernos, alguém que nasce em um país em guerra e tem seus membros mutilados por minas terrestres, perde sua família etc., está em um inferno quente (os textos descrevem mutilações e torturas nesse inferno). Alguém que nasce na Somália e passa fome e sede pode estar no reino dos fantasmas famintos. Ou talvez até mesmo alguém que não passa exatamente fome e sede, mas nasce com uma condição de eterna insaciedade, insatisfação, que compra, compra , adquire, mas nunca se satisfaz, pode ser um fantasma faminto. Pessoas que vivem como escravas, que são presas, que são subjugadas a vontade de outros, apanham etc... podem estar em condições do reino animal, pois vivem como animais. Pessoas que nascem em condições de luxo, riqueza, que vivem só do bom e do melhor e passam a vida a deleitar-se, podem estar no reino dos deuses.

Uma vida equilibrada entre coisas boas e ruins, possibilidades etc., pode ser uma vida, de fato, no reino humano.

Assim como Kamalashila, outros mestres do budismo tendem à uma interpretação SIMBÓLICA desse renascer como animal, como se fosse um 'estado de consciência animalesco', e não um animal em si.

No budismo, também se fala de graus de consciência, um animal é considerado mais elevado que uma planta. E a vida humana é louvada como a mais difícil de se alcançar e a mais valiosa. Então, creio não fazer sentido renascer como animal, mas enfim, é uma questão polêmica, mesmo para os budistas, e há muita controvérsia e discordância.



Próximo Artigo: Orientalismo IV - Budismo - conclusão




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